domingo, 10 de abril de 2011

A face humanizada da loucura


Uns estão contidos em suas macas, cujas ataduras cuidadosamente amarradas em seus pulsos, impedem a livre movimentação dos braços e mãos. Outros, nos quais as crises foram controladas pelos médicos, brincam entre si, folheiam livros, assistem televisão como crianças, refesteladas no chão úmido de cerâmica. Vivem em mundos imaginários. Nem eles mesmos conseguem descrever o que vêem ou com quem conversam. Alguns dormem, entorpecidos pelos medicamentos que controlam a ansiedade. Dividindo o mesmo espaço, pacientes com distúrbios mentais e drogados lotam as enfermarias do Hospital Dr. João Machado.
Aldair DantasO Caps instalado no bairro Petrópolis funciona em uma casa bem estruturada, mas não consegue atender à crescente demanda 
O Caps instalado no bairro Petrópolis funciona em uma 
casa bem estruturada, mas não consegue atender à crescente demanda

Do total de internados, 70% deveria estar em clínicas de recuperação e desintoxicação. São alcoólatras e/ou viciados em drogas. A ocupação de leitos por este tipo de paciente e a permanência de doentes mentais no hospital, evidenciam as dificuldades de se implementar, de fato, a Reforma Psiquiátrica, vigente no país desde os anos 80. O principal foco é substituir a visão “hospitalocêntrica” da assistência psiquiátrica. “O objetivo da reforma não é extinguir os hospitais. E sim tratar os distúrbios mentais como uma doença comum”, esclareceu a secretária estadual de Saúde adjunta, Ana Tânia Sampaio.

Os problemas para que a Reforma se efetive plenamente ocorrem em cadeia. Para a otimização do atendimento psiquiátrico é preciso que União, Estado e Município, atuem como parceiros. As ações, porém, são lentas. Há mudanças que precisam ser realizadas na rede básica de saúde para que o hospital de referência funcione sem problemas de superlotação, por exemplo.

A porta de entrada para o correto atendimento de pacientes com surtos psicóticos ou problemas com drogas e álcool são os Centros de Apoio Psicossocial (Caps). Os Caps, pelo menos em Natal e nas cidades do interior que as possuem, deveriam ser responsáveis pela recepção de pacientes com ou sem crise e de lá, de acordo com a análise do quadro feita por um psiquiatra, seriam encaminhadas para casa, ficariam sob observação no local ou seriam encaminhados ao hospital de referência.

Como parte do sistema da Reforma Psiquiátrica, os municípios devem oferecer prontos-socorros especializados. Em Natal, por exemplo, não há um pronto-socorro de psiquiatria municipalizado. A ausência desta ferramente que deveria estar inserida na rede de saúde básica, reflete na superlotação das enfermarias do único hospital estadual de referência, o João Machado. Para Ana Tânia Sampaio, a Secretaria Municipal de Saúde deve oferecer, num prazo de tempo mais curto possível, um pronto-socorro com especialistas na área. Inclusive a Justiça está cobrando ações da prefeitura em relação a este tema.

“Caso a prefeitura não tenha condições de construir um pronto-socorro psiquiátrico, nós poderíamos até ceder parte da estrutura do João Machado. Os funcionários, porém, não seriam emprestados ao Município. Não seremos irresponsáveis ao ponto de fecharmos o único pronto-socorro psiquiátrico público em funcionamento”, afirmou Ana Tânia Sampaio. Com o recente descredenciamento da Clínica Santa Maria pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o índice de pacientes internados aumentou na enfermaria do hospital. Todos os leitos de enfermaria na unidade estão ocupados.

Um outro agravante, cuja responsabilidade mais uma vez recai sobre o Município, é a inexistência de clínicas de desintoxicação e recuperação de alcoólatras e viciados em drogas. Na inexistência, os pacientes são encaminhados ao setor de Álcool e Drogas do João Machado. Porém, antes disso, dividem o mesmo espaço com os deficientes mentais e pessoas em surto psicótico.

O atendimento ao doente mental mudou com o passar do tempo, é fato. A Reforma Psiquiátrica ganhou novos parceiros, como os profissionais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) que foram treinados para realizar os atendimentos iniciais dos pacientes. Além disso, de acordo com Ana Tânia Sampaio, as Unidades de Pronto-Atendimentos, como a do Pajuçara, por exemplo, passarão a ser porta de entrada para atendimentos de psiquiatria. “Está no regulamento de funcionamento das UPAs receber pacientes de psiquiatria”, comentou a secretária adjunta.

Natal dispõe de apenas cinco Caps

Para atender uma demanda crescente, diante da ineficiência das políticas públicas de combate ao consumo e à facilidade de se adquirir drogas, além da superlotação do único hospital psiquiátrico estadual, o número de Centros de Apoio Psicossocial (Caps) funcionando em Natal se torna insuficiente. Com uma população de aproximadamente 800 mil habitantes, dos quais a maioria se concentram na zona Norte, somente cinco unidades estão em  funcionamento.

Deste total, somente um recebe pacientes em regime de internação e opera com leitos emprestados pela Secretaria Estadual de Saúde (Sesap). A situação, porém, para a coordenadora do Núcleo de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, Márcia Biegas, era pior quando os Caps não eram divididos por regiões administrativas.

“Com a pactuação entre o Hospital João Machado, Samu e prefeitura, os pacientes em crise que eram resgatados em bairros das zonas Leste e Sul, deixaram de ser encaminhados diretamente para o hospital psiquiátrico”, esclareceu Márcia. O único Caps III (modalidade internação) de Natal funciona com 8 leitos numa residência adaptada nas proximidades da Academia Norte-rio-Grandense de Letras, na Rua Mipibu.

De acordo com a coordenadora, os projetos que existem hoje em tramitação na SMS são para transformar um Caps II AD (álcool e drogas nos quais os pacientes não pernoitam), na zona Norte, em modalidade III. “A maior demanda de pacientes está na z. Norte. Por isso que decidimos mudar a classificação do Centro naquela região. Além disso, pretendemos abrir mais um até o final do ano na mesma região”, disse.

Em relação ao descredenciamento da Clínica Santa Maria, onde o Município pagava por 100 leitos, Márcia afirmou que a partir de junho, os custos que eram repassados à clínica serão utilizados para melhorias e aumento de atendimentos nos Centros. Segundo Márcia, pacientes tratados nos Caps saem das crises mais rápido, devido ao contato social e familiar que não são interrompidos, diferente dos hospitais.

 Sobre o problema de desabastecimento de medicamentos nas unidades  em Natal, Márcia afirma que  o problema começou a ser solucionado no início da semana passada. Na parede do consultório, porém, constava uma lista com 9 medicamentos em falta datada de 21 de março de 2011. A falta de medicamentos foi confirmada em todas as unidades via ligações telefônicas quinze dias após a visita da TRIBUNA DO NORTE ao Caps III.

 Para a eficácia da Reforma Psiquiátrica, a coordenadora municipal afirmou que o regulamento do Ministério da Saúde deveria ser seguido. “Precisa-se incluir leitos em hospitais gerais. Este é um dos itens que estão no regulamento do Ministério e ainda não foram seguidos aqui”. Enquanto o número de leitos no único Caps III de Natal não aumenta, os pacientes seguem superlotando o pronto-socorro do João Machado.

Preconceito ainda dificulta reabilitação de pacientes

Os enigmas da psiquiatria vão além dos muros dos hospitais que internam pacientes em crises. Eles estão mais próximos da sociedade do que se possa imaginar. Para os leigos, há somente um nome para os distúrbios psicóticos sofridos por milhares de pessoas no Brasil e no mundo: loucura. E para estas pessoas, um único destino: os sanatórios.

 Desde sua inauguração, em 1957,  a função de receber pacientes com esquizofrenia, crises de personalidades e inúmeras outras doenças psiquiátricas, fez com que o Hospital João Machado não tivesse o reconhecido valor. Os jovens de hoje com certeza ouviram, em algum momento da vida, que lugar de “doido era internado no hospital colônia”.

É justamente contra comentários e ideias desta natureza, que a Reforma Psiquiátrica foi implementada. Socializa-los, assim como se fez como os portadores de hanseníase ao longo de décadas é, talvez, a maior dificuldade de quem trabalha hoje nos hospitais psiquiátricos.

Não sabemos ao certo onde residem os nossos mais íntimos preconceitos. Até que uma visita a um complexo psiquiátrico nos revele, como seres humanos, que somos vulneráveis e passíveis de transtornos, genéticos ou adquiridos, como tantos jovens, adultos e idosos que superlotam o João Machado.

Bate-Papo - Antônio Geraldo da Silva » presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria

No que consiste a Reforma Psiquiátrica Brasileira?

 Nos anos 60, os psiquiatras brasileiros já propunham a mudança de um modelo de assistência psiquiátrica centrado ou reduzido ao hospital para um modelo de assistência integral, que dispusesse de recursos capazes de atender às necessidades dos pacientes. Em meados da década de 80 a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a Divisão Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde passaram a desenvolver uma ação conjunta objetivando mudanças na legislação. Essas mudanças foram possíveis com a aprovação da Lei 10.216 de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Esse modelo, no entanto, foi reduzido aos Centros de Atenção Psicossocial ( Caps), estabelecimentos criados pelo Governo com a responsabilidade de regular a porta de entrada da rede de atenção em saúde mental. Ao menos em tese, cabe aos Caps o acolhimento e a atenção às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes.

Ela vem sendo implementada? O processo é rápido, demorado. Como se caracteriza? Quais as principais dificuldades?

Os Caps estão substituindo a anterior atuação dos hospitais psiquiátricos e não sendo um equipamento a mais a integrar o sistema, ferindo frontalmente a Lei 10.216/2001 que preconiza o redirecionamento do modelo assistencial, garantindo ao paciente o acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades. Além de não haver CAPS em número suficiente, eles não são equipados corretamente e não possuem infraestrutura necessária para um atendimento adequado nem psiquiátricas, especialidade que atende aos doentes mentais. Trocou-se um modelo hospitalocêntrico obsoleto por um modelo Capscêntrico ineficiente e ineficaz para atender às necessidades de todos os pacientes psiquiátricos. Um dos motivos disso é próprio da natureza dos CAPS. O padecimento do paciente psiquiátrico, entendido simplesmente como situação social e não como enfermidade. Embora a ABP discorde do modelo anterior, centrado no hospital ou reduzido a ele, também não concorda com o modelo atual centrado no v porque ambas as reduções são insuficientes para atender às necessidades dos doentes. Deve-se criar uma rede integral de atenção em Saúde Mental, não se resumindo a um único tipo de serviço. Além de desospitalizar, o governo parece pretender despsiquiatrizar.

Qual a diferença no tratamento psiquiátrico público e privado?

A diferença fundamental é que na rede pública, o doente mental não consegue atendimento adequado, enquanto o tratamento na rede privada, o paciente paga e obtém atendimento.  A ABP sempre foi e sempre será contra a má assistência psiquiátrica onde quer que ela seja feita e quem quer que a execute ou financie. Contudo, é preciso não esquecer que a má ou boa assistência não está no nome ou no tipo da instituição na qual ela é feita, mas nos procedimentos que são realizados e, sobretudo, em seus resultados. O governo federal, pela ação equivocada do Ministério da Saúde, não pode se esquivar, como vem fazendo, de financiar o tratamento dos pacientes acometidos de transtornos mentais, de forma a atender adequadamente as suas necessidades

Colocar pacientes psiquiátricos junto com viciados em álcool e drogas é comum? O tratamento é eficaz desta forma?

A baixa oferta de leitos especializados em dependentes químicos leva ao uso de leitos psiquiátricos gerais. A organização de serviços especializados para, por exemplo, transtornos do humor, psicoses e dependência química eleva a capacidade de tratar casos mais graves, reduzindo a necessidade de reinternações e tornando mais tolerável o período hospitalar. As limitações de uma unidade geral que recebe dependentes químicos são em parte atenuadas pela organização de atividades específicas para os dependentes químicos. Elas podem incluir acesso a grupos de autoajuda, grupoterapia de motivação para a mudança de comportamento e prevenção de recaídas, habilidades sociais de enfrentamento de situações de pressão social relacionáveis com recaídas, atividade física e de manejo do estresse, atividades educacionais e de qualificação laboral, desenvolvimento da espiritualidade, independentemente da orientação religiosa, psicoeducação com conceitos práticos relativos as substâncias de abuso e suas consequências clinicas. A presença de voluntários motivadores com treinamento e supervisão pela equipe médica costuma melhorar a adesão ao tratamento e objetivo de abstinência. A abordagem concomitante de familiares também tem grande pacto do manejo da ambivalência para com o dependente químico.

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